Ontem,
na aula da professora de história, estávamos discutindo algo meio estranho do
que sempre discutimos em aulas de história. Nada de datas, nomes compridos,
acontecimentos históricos... Falávamos sobre conhecimento. Era o primeiro dia
de aula, e talvez é por isso que a professora não foi direto ao conteúdo, afinal,
primeiro dia de aula é tudo igual mesmo: enrolação pura!
Mas até que às vezes os
professores acertam e acabam fazendo algo legal. O que não dá é para aguentar o
velho discurso de que a educação é muito importante, o conhecimento é
fundamental, de que temos que estudar cada vez mais, que o nosso futuro isso,
nosso futuro aquilo, blá, blá, blá, e a gente ali, com vergonha, acanhados,
doidos para conhecer os novatos, bater aquele papo... Sabe como é, né? Primeiro
dia de aula a gente fica quietinha para causar boa impressão, mas não ao
professor, e sim aos meninos, é claro. Ah! Causar boa impressão também às
meninas: muita maquiagem, a roupa nova que usamos no natal, e por aí vai. Só
pra deixar elas com inveja da gente...
Sei é que no meio daquela
discussão nada a ver aconteceu algo interessante. O Armando estava atrás da
professora quando ela perguntava, do meio da sala, o que era conhecimento. Eu
observava tudo caladinha... O Armando é um gato, mas parecia que não tinha muito
conhecimento...
– Será que o nosso avô, lá da roça
tem conhecimento, Armando?
O silêncio imperava na sala.
– Armando?!
– “Fessora”, eu acho que não tem
não. O velhinho meu avô é analfabeto de pai e mãe. Ah! Mas tem uma coisa que
ele sabe muito melhor do que eu: ele sabe contar. Faz contas de todo jeito...
– E então, gente, isso é
conhecimento ou não?
– Sim! Responderam todos.
– Pois é! Precisamos compreender
que existem diversas formas de conhecimento e que todas elas têm sua
importância.
– Sei, “fessora”, mas ele não tem
esse conhecimento que a senhora “tava” dizendo pra gente buscar não. O vô nunca
foi na escola, mal assina o nome, não lê nada...
– Mas ele tem muitos
conhecimentos. Conhecimentos que talvez nunca conquistemos, muitas vezes por
não precisarmos deles, como cuidar dos animais, por exemplo. E os cálculos, que
teu avô aprendeu a fazer, fazem parte do conhecimento científico, o que é muito
importante. E tem mais: muitos de vocês que estão aqui talvez não saibam nem a
metade do que teu avô sabe dos números.
– Então eu vou deixar de estudar
e vou é pra roça, “fessora”. Meu avô não estudou nada, só aprendeu a contar e
tem mais de quinhentas cabeças de gado, tem dois empregados, caminhoneta na
garagem, novinha, terra pra caramba... Quer mais o quê? A senhora, que estudou
tanto e tem tanto conhecimento, mal tem uma Pop pra vir pra escola, vive de
aluguel, é humilhada pelo governo, tem que fazer greve pra aumentar quase nada
no salário, trabalha mais que uma jumenta, de manhã, de tarde e de noite e
ainda leva trabalho pra casa... Isso lá é vida, “fessora”?! Tô fora! Vô pra
roça!
Todo mundo sorriu nessa hora. A
professora abaixou a cabeça e foi andando até a sua mesa, se sentou. A turma
ficou observando em silêncio.
– Não conheço o seu avô, espero
que seja um bom homem e que tenha conquistado tudo o que tem com o seu
trabalho. O conhecimento que tenho fez de mim uma professora. Infelizmente essa
profissão, por mais bela e digna que seja, ainda não é valorizada em nossa
sociedade. Mas sou professora por que espero que com o meu conhecimento,
conhecimento que busco, que aumenta todos os dias, eu possa compreender o
porquê de tantas coisas injustas que temos no mundo e orientar os meus alunos
para que tais injustiças diminuam ou deixem de existir no futuro. Pois se
lembre dos dois empregados do seu avô! Hoje, se você quiser ir pra roça, como
disse, será para ser como eles. Você acha que eles têm uma vida boa, digna?
Acredita que são felizes tendo que acatar as ordens do seu avô para sobreviver,
tendo que sobreviver com um salário que os impede até de sonhar, que torna suas
vidas limitadas a mediocridade do “nasci
assim, tenho que morrer assim”?... Acredito que você não quer uma vida
assim... Todos os seres humanos tem a mesma capacidade de tornarem-se donos de
suas vidas, capacidade de compreender as artes, a ciência, o social, a
verdadeira aventura que é viver sobre a face da terra. É uma pena que tantas
pessoas sejam limitadas ao quase nada... Muitos até são formados, graduados,
mas deixam que suas vidas se tornem verdadeiras prisões nas quais nem se quer
descobrem a magia existente num pôr-do-sol... Incapazes de compreender a beleza
que há na natureza, na diversidade, na pluralidade existente em nosso mundo.
Pessoas de conhecimento limitado que acreditam que a felicidade, o bom da vida,
é ter poder, quer dizer, dinheiro para poder mandar nos medíocres, nos puxas
sacos, nos que se deixam humilhar por não terem se quer descoberto que a vida é
uma só e que não foi feita para sermos humilhados, enganados, roubados...
Apenas com o conhecimento, com a percepção da realidade a nossa volta, apenas
adquirindo a sensibilidade tanto para as artes e para o conhecimento científico
quanto para a existência em sociedade, que é a verdadeira arte e ciência, é que
nos tornamos seres completos e capazes, quem sabe até de uma experiência
espiritual, coisa que há muito tempo vem sendo vendida pelos templos, cristãos
ou não, mas que pela superficialidade apresentada pelos que se dizem profetas
ou iluminados, se torna algo que provoca conflitos, desentendimentos e
dúvidas... Bem, acho que já falei de mais... Mas o conhecimento é essa coisa
que nos faz melhores, que nos mostra verdades, por mais que a verdade seja algo
relativo. Mas o legal é que com o conhecimento você não vai mais aceitar tudo o
que te dizem como verdades absolutas. Historinhas de papai Noel nunca mais!
Por incrível que pareça, os
alunos ficaram ligados no discurso da professora. Eu não vou negar, gostei
muito. Nunca aceitei essa ideia de ter que ficar babando ninguém. Minha mãe é
diretora de escola e vive reclamando da vida em casa: vive sendo humilhada, mas
não larga o cargo. Vai entender...
Amanhã, acho que vai ser normal:
professor, quadro cheio, a bagunça vai começar, se chover vai ter goteira, suco
de goiaba com bolacha de água e sal... Nada que não seja da rotina de nossa
escola. Só espero que eu e meus filhos, se é que vou ter coragem de tê-los
nesse mundo tão doido, vivamos num país com o conhecimento que a professora
tanto sonha para nós. E que esse país e principalmente nossa cidade se
transformem em lugares melhores, sem tanta roubalheira, sem tanta corrupção. Um
lugar do qual tenhamos orgulho e no qual sejamos felizes.